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Carlos Carreiro

QUANDO A COR ENTROU NA FAMÍLIA
curadoria de Maria de Fátima Lambert


20 SET'25 ▷ 18 FEV'26

O céu enaltece voos de cavalheiros, enquanto meninas inteligentes se superam. O Santo dos Painéis de São Vicente acomoda-se, qual piscadela de olho a D. Henrique ou, quiçá, a um coelho de Alice, quer navegar até Marte num foguetão cartonado. Entre sapos e princesas, os ovos estrelados, atemorizados pela airfryer, saltam para o bolo enfeitado de camélias acondimentadas.

Eis o festim que Carlos Carreiro promove, reunindo personagens, seres híbridos e objetos de estima.

Da iconografia improvável extrai a essência dos factos, convidando-nos a libertar constrangimentos, superar estereótipos e questionar preconceitos.

As suas pinturas narram estórias infinitas, partilhando a liberdade intemporal da arte.


Agradecimentos:
Artista
Rita Carreiro


Texto Curatorial:

Quando a cor entrou na família – verso e reverso do texto
“Eu assumi: entrei no mundo das imagens.” ¹

"Tudo que invento dos outros é de mim que falo. Pois sempre não foi assim, desde os tempos de Flaubert?" ²

Opus 1

A obra de Carlos Carreiro obedece a uma lógica do invisível, quando o pensamento demonstra a sua capacidade em gerir a imaginação-pessoa, em consonância aos imaginários coletivos, ativando as mitologias ancestrais, tanto quando forjando novos sentidos para estereótipos modernos e contemporâneos. A pintura contém o mundo, celebra o âmago, o núcleo que entra nos sonhos em modo película de filme a preto e branco e, depois porque lúcida, ressalva a cor-pigmento-vida que deve inundar olhares.

Quando se pensa em imaginação-pessoa, reflete-se sobre como a identidade, olhando para a pessoalidade suscetível de comunicar ideias e responsabilidades.

Quando se pensa em imaginário(s) vistos na sua pluralidade e reconhecidos no coletivo humano. O imaginário que assoma à janela do conhecimento poético, racionalizado na materialidade cosmogónica de Gaston Bachelard.

Quando se pensa em mitologias ancestrais e suas remitologizações, evocando Gilbert Durand, após Mircea Eliade.

Quando se pensa nas outrora “novas mitologias”, a lembrar Roland Barthes.

Quando se pensa a cores, na fluidez de suas simbologias e contextos, invocam-se Michel Pastoreau, após Johannes Itten, Kandinsky, Ludwig Wittgenstein e na senda de Goethe.

Quando se pensa na celebração polícroma e no simbolismo alegórico medieval, exemplarmente vivo no Livro de Horas do Duc de Berry. Quando se reconhece que ilumina a (nossa) ânsia em demorar o tempo, de o celebrar sem que ínfima parcela se dissolva no caminho.

Opus 2

Na pintura de Carlos Carreiro, a lembrança, una e diversa, é extrovertida em imagens compósitas. A lembrança que já memória, verifica-se imparável, pois se desdobra em iconográficas que se adicionam e interseccionam em cada composição. Cada e todas as lembranças alimentam a memória que é a primeira assunção estética a entrar em cena. A composição é uma epifania, um deleite visual pensante. Progride para se estabelecer como memória iconográfica, pois conforma e se fortifica em cenários sucessivos, gerados a partir de situações que o artista celebra, mimetiza, inventa ou efabula. A memória que é lembrança, alimenta um teatro de tempos sobrepostos que expõe pequenos eventos - concomitantes ou dispersivos; promove o confronto, vivido num jogo onde convergência e dispersão se coreografam.

A partir da ação autoral, mediada pelo fluxo da imaginação criadora que pondera sobre racionalidades críticas, revalidou-se, ao longo do séc. XX, a tensão remitologizadora de imaginário individuado. Confirma-se no caso de Carreiro e em pleno séc. XXI, que a lição da ironia desconstrutiva de William Hogarth se projetou em episódios que, em muito, ultrapassaram a plêiade criticista de Setecentos. Nela se reconhece perspicácia intemporal, justificada na controvérsia dramática da contemporaneidade. Cabe ao artista, quando visionário, afirmar – convertendo pesadelos em sonhos cuidadosos – tais cenas visuais (plenas) que entram pelos nossos olhos até ao pensamento. Cumprem um dever humanizador pois qualificam as nossas vidas. Trata-se, enfim, para o pintor, de uma ação plural – oriunda da singularidade pessoal em missão coletiva, que, por isso mesmo, sabe personalizar as obras criadas de forma que atingem todas as pessoas que se mostrem disponíveis a exceder a mediania. A exigência pictural é categorizada por axiologias que elevam pela arte as pessoas (Fernando Pessoa escreveu sobre a arte para elevar, além de entreter e agradar); exprime-se mediante tópicos identitários (visuais e particulares) que se conciliam a tópicos arquetípicos que, aliás, cada um de nós pode ativar, comprovando que existem sincronismos e diacronismos georreferenciados, temporais, portanto, culturais que não se molestam. Daí, perfilarem-se “listagens” de imagens/metáforas obsessivas que, na pintura de Carlos Carreiro subsidiam e se projetam/introjetam nas nossas, pela liberdade de receber e acionar fruições críticas - parafraseando Charles Mauron³. A obsessão esteticizada relaciona-se com a motivação vista na escolha dos motivos específicos; articula-se à ação deliberativa, ao repetir (para inventar sempre) determinados conteúdos iconográficos que, todavia, se mostram de diferente índole e cumprem, portanto, desígnios singulares harmonizados na irreverência – em prol de um bem comum.

Opus 3

O céu enaltece os voos de cavalheiros engravatados; as meninas inteligentes superam-se, pois são. Entretanto, o Santo dos Painéis de São Vicente acomoda-se, qual piscadela de olho a D. Henrique ou, quiçá, a um coelho de Alice: quer navegar até Marte num foguetão cartonado. Porventura, entre sapos e princesas – genuínos influencers – os ovos estrelados, atemorizados pela airfryer, saltam para o bolo enfeitado de camélias acondimentadas.

Eis um festim da imaginação que Carlos Carreiro promove, convencendo uns e outras a reunirem-se numa celebração magna. Convocou as personagens, domesticou os seres híbridos e acarinhou objetos de estima! A sua argumentação é lúcida, pois sabe extrair a verdade maior, através da sua iconografia mais improvável, pelo que mais persistente. Dos fatos e dos acontecimentos, o pintor retira a essência radiante que nos permite, enquanto fruidores e contempladores, libertar de constrangimentos, superar estereótipos, questionar preconceitos e derrubar atavismos (Almada dixit)!

Corremos os olhos pelas paredes afora, detendo-nos em cada episódio que, no pensamento calado de ver, seduz narrativas, estórias inúmeras a contar! As palavras escrevem-se nas figuras enredadas por impossibilidades e inadvertências. Esta é a liberdade que a sabedoria da pintura compartilha, em qualquer tempo e lugar.


Maria de Fátima Lambert. Porto, setembro 2025.

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¹ Barros, Manoel de. (2003) “O Poeta”, Ensaios Fotográficos. São Paulo: Record, p. 47

² Barros, Manoel de. (2010) in Adalberto Müller (Org.). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, p.112

³ Mauron, Charles. (1963). Des métaphores obsédantes au mythe personnel. Introduction à la psychocritique. Paris : Éditions José Corti.